Clarividência remota

Estou no ônibus. Não importa qual nem a hora. Tanto faz a direção. Dentro dele, sentada atrás de mim, uma mulher atende o chamado do celular e diz à sua prole o que deve comer, se o pão com a mortadela ou o “arroz-que-ficou-separado-no-potinho-ao-lado-da-panela-com-a-coxa-de-galinha-que-sobrou-do-almoço”.

Ao mesmo tempo em que pede licença para se sentar em um dos três únicos lugares vagos, a mãe descreve com riqueza de detalhes em que lugar cada mantimento se encontra. Minuciosamente, ela indica cores, formas, conteúdo, espaço, posicionamento e até mesmo prazo de validade. Clarividência remota.

Do outro lado da linha, provavelmente, um ser desnorteado segue com sucesso as informações, pois a mãe permanece abrindo os caminhos e ajudando o filho a vencer as fases do jogo na caverna refrigerada.

Mas – não se esqueçam – ela é mãe. E como tal empurra o filho até o último passo, dizendo onde o prato deve ser deixado quando a refeição terminar. É só então que a mãe dá um destino ao vazio lambuzado.

No assento ao meu lado, uma esposa também explica ao marido onde está a comida. Revela a ele, de-ta-lha-da-men-te, de onde vem a comida que se manifesta em seu prato todos os dias. O milagre é descoberto. Ele sente dificuldades. Ela diz que não demora.

Em quase toda a viagem, várias vozes recomendam, orientam, explicam, pedem, ameaçam – sim, há mulheres que apartam brigas pelo telefone celular – à distância.  Em um ônibus, não importa qual nem a hora. Tanto faz a direção. Dentro dele, sentada atrás de mim ou de você, certamente há uma clarividente remota.

“Não”

Muito se fala e se tem conhecimento de relatos revoltantes de violência contra a mulher. São maridos, filhos, irmãos e ex-cônjuges que usam da força, da ofensa verbal e de armas de fogo, ou branca, para fazer valer a sua vontade. No entanto, existe outro ambiente, além do doméstico, onde a agressão contra a mulher é cometida e, infelizmente, não anda merecendo a devida atenção. 

No escuro, em um pub, ou simplesmente ao ficar com alguém, estas “relações” também comportam, além das cantadas, ofensas e agressões. Não quis mais ficar com o cara? Não retribuiu o beijo? Não aceitou repetir a dose da noite passada? Abre-se aqui um precedente para que o homem em questão se sinta rejeitado o bastante para desferir uma ofensa ou, pior, chegar às vias de fato, ainda que “discretamente”.

É inegável que o poder intimidador da força masculina é desigual. Aos homens que carregam em seu DNA o perfil agressivo, o “não” fere o seu orgulho de forma vexatória.

E, a partir daí, chegam as ofensas por e-mail, por SMS ou via rede social – sem falar na difamação entre os amigos. E, apoiados na falta de intimidade e na certeza de que a chance de um reencontro é remota, eles desencadeiam uma série de agressões, na maioria das vezes verbal. Tal cenário não é fruto do acaso ou de um pequeno estranhamento: é violência, sim. A palavra dói, machuca e ofende.

Nós, mulheres, não somos produtos, bens que devem servir de posse a alguém. Temos o direito (vejam só!) de não querer transar, não querer ficar, de não gostar. E ponto. Não é nada pessoal, apenas o nosso direito, assim como vocês, homens, têm os seus – e que, alguns, de forma equivocada, lançam mão da violência para garanti-los. Lembro-me do trecho de um artigo publicado pela filosofa Márcia Tiburi sobre o tema: “o patriarcado tratará como anomalia tudo o que se coloca contra a sua ordem”. Fato.

Não disponho de dados científicos ou gráficos que atestem minha observação, mas creio que a experiência empírica, entre conversas com amigas ou na própria vivência de uma situação desagradável, corrobora com os exemplos citados. Muito provavelmente você (ou alguma amiga), um dia, foi chamada de “vadia”, “vagabunda” e outros adjetivos não mais simpáticos por ter dito “não”.  

Portanto, você, homem, saiba que eu sou mulher, dona de meu corpo e de minhas vontades. Tenho o direito de não querer você. Tenho direito de escolha. Tenho o direito de não gostar de você. Tenho o direito de dizer “não”. E não ser agredida por isso. 

O choro das carpideiras ou O manifesto contra Leonam

Tomo como prática, desde que me formei em Jornalismo, na Pucrs, informar ao meu interlocutor de que não, não fui aluna do Leonam na cadeira de Aprofundamento de texto e no estágio de Redação Jornalística. Confesso que tal negativa está carregada de ressentimento.

Claro que, ao manifestar minha opinião, corro o risco de ser indelicada com os demais professores que com tanto zelo me ensinaram e orientaram na lida apaixonada pela escrita. Nada tenho a me queixar deles. Mesmo. De verdade. Muito do que escrevo e dos erros que tento evitar hoje vêm, justamente, dos conselhos de meus mestres.

No entanto, o nome de Leonam continua a soar com suas sílabas mântricas pelos corredores da Famecos e na boca de jornalistas competentes e reconhecidos. É demais para mim. E a minha não-aula e o meu não-professor se fazem tão presentes quanto realmente tivessem sido um dia.

Fora do saguão da Famecos, pertenço ao grupo conhecido como “as carpideiras de Leonam” ou ainda “os órfãos de Leonam”. Poderia arriscar, inclusive, todos, ou pelo menos parte, dos mandamentos literários ditados por este senhor simpático, tamanha divulgação de seus feitos.

Aliás, esta é uma forte marca de grande parte dos alunos de Leonam: a devoção cega, o brilho nos olhos quando se referem ao mestre de maneira quase obcecada. Leonam comanda um culto digno de receber atenção e vigília. Uma seita pode ser perigosa, por que não?

A propósito do carisma do professor: faço votos de que um dia sua máscara caia saguão da Famecos abaixo enquanto ele discorre mais um de seus conselhos. Seja intragável e incompetente, Leonam! Ao menos uma vez! Permita que falem mal de ti. Não apenas um ou dois alunos, mais, muito mais (minha pesquisa empírica não completou uma dezena de desagrados).

É diante dos motivos expostos acima – e outros que irão despertar ressentimento no calor da hora entre um elogio e outro ao professor – que acredito nunca me curar deste mal. Terei a chance de fazer mestrado, doutorado, trabalhar na redação da New Yorker, escrever um livro, ganhar o Pulitzer, e, ainda assim, algum jornalista irá jogar na minha cara que foi aluno de Leonam. E terei de engolir a seco e dizer com desdém “já ouvi falarem dele”.

O inconveniente aplauso egocêntrico

Aqueles que têm o costume de frequentar espetáculos, seja qual for sua magnitude, sabe que entre os cidadãos existe – e persiste – a presença de um personagem enigmático que, provavelmente, deva ter perpassado a história da humanidade desde que ela definiu como elogio a junção abrupta e veloz das palmas das mãos. O cidadão em questão sempre me chamou a atenção e intrigou minha curiosidade.

Inadvertidamente, sua presença é sentida após a apresentação de algum número artístico, discurso de churrasco ou no Parabéns a você. Refiro-me, caros, àquele que faz questão de deixar claro que a última palmada é sua. Observe, ele não se intimida diante do hipotético silêncio que se segue após a explosão de vivas e bravos. Sempre – sem receio de generalizar – vai existir a última palmada após um aplauso. Ele é o eco individualista do ato, é o monólogo de uma saudação egocêntrica, é o último suspiro de um júbilo autoritário.

Suspeito que nem mesmo o Senhor Palmada – vamos chamá-lo assim – tenha consciência de seu ato, pois ele é movido pelo calor da hora. Sozinho na plateia, possivelmente ele não sentiria o mesmo deleite formigando cada centímetro de suas mãos. O que o instiga é justamente o desafio de ultrapassar os limites da coletividade. Estar a três palmas à frente dos demais é seu dever, afinal.

Durante um estudo feito por uma universidade de Londres, pesquisadores do Curso de Medição de Palmas fizeram uma contagem do número destes sons retardatários durante um show de stand up ocorrido em março deste ano. Os resultados apontaram que, caso todas as palmas individuais fossem isoladas, elas somariam exatos 42 minutos de duração. Um show à parte, portanto.

Contudo, nenhum registro parece tão singular quanto um espetáculo que aconteceu há aproximadamente dois anos, em Porto Alegre, no Sul do Brasil. Na ocasião, durante o show de um cantor prestigiado da MPB, houve um embate entre o Senhor Palmada e outros espectadores que reivindicavam o mesmo posto. Como nenhum deles se contentava em ficar para trás, o que se sucedeu foi uma contínua e ininterrupta sequência de palmas isoladas. Por motivos óbvios, o show teve de ser cancelado sem que o artista em questão cantasse sequer a primeira música, já que o incidente ocorreu logo em sua chega ao palco.

Mesmo a contragosto, o Senhor Palmada ainda divide a atenção com outro sujeito anônimo, onipresente e que também possui certa dificuldade em fazer parte da mesma unidade de tempo humorística do restante do grupo: é o Senhor Risada Fora de Hora. Ele marca sua presença, sobretudo, em salas de cinema onde são exibidos filmes chamados “de autor” ou experimentais, e em peças teatrais em que a metáfora e o absurdo tomam proporções gigantescas.

É quando o silêncio na plateia impera, quando apenas os atores – na tela ou no palco – se manifestam que, que o Senhor Risada Fora de Hora se destaca, ressaltando sua relativa inteligência, sua noção equivocada de ironia exacerbada e seu questionável senso de humor, deixando o público receoso e inseguro quanto à compreensão do espetáculo em questão (“estamos assistindo a mesma coisa?).

Na dúvida, os demais esboçam uma risada falsamente sarcástica, abrindo espaço para que os intelectuais soltem as gargalhadas. É neste momento em que o autor da peça, portanto uma expressão indagadora, corre aos seus alfarrábios para revisar as falas, e o projecionista do filme confere se realmente não cometeu nenhum erro.

Mas nada disso parece ser tão grave, meus amigos, quando as características do Senhor Palmada e a do Senhor Risada Fora de Hora se fundem. Neste caso, peço apenas que não me convidem a fazer parte desta plateia. Pelo bem de todos.

Que parte meus irmãos são de mim?

Sempre que encontro por acaso esta foto enlaça um nó na garganta. Estamos nós três  debruçados na borda de uma piscina de plástico. O riso sai fácil, assim como as brigas  tão comuns entre irmãos.

Afinidades. Desavenças. Disputas pela atenção e pela abstrata e muda preferência materna. Quarto, brinquedos, lanches e amor que minha mãe tentou dividir de maneira igualitária. O esforço é válido e genuíno, embora o mais relevante seja o quanto estamos dispostos a receber ou recusar daquilo que nos é dado.

Nos afastamos aos poucos por vocês dois serem homens e eu mulher, por termos idades distintas, gostos diversos, por morarmos em cidades diferentes ou por qualquer outra desculpa que suprima a responsabilidade de se bancar uma relação.

Olho agora para a foto. Onde vocês começam ou terminam em mim? Em que parte nos encontramos, já que vocês não são minha origem nem meu fim? Vocês são o meu igual mais diferente. Olho para vocês e tento me reconhecer na parte que também é minha, que também sou eu.

Onde tocam as músicas que cantávamos em frente ao espelho? Qual a cor predileta de vocês? Que filme mais gostam? Por que nem brigamos mais? Precisamos descobrir, urgentemente, não onde nos encontramos, mas quando nos perdemos.

Olho a foto. Estamos nós três debruçados na borda de uma piscina de plástico. O riso saía fácil.

Mensageiros do tempo

Não foi preciso que os primeiros fios de cabelos brancos surgissem sobre minha cabeça ainda jovem para saber que o tempo está passando. Vejo minha imagem refletida no espelho diariamente, replico-me inúmeras vezes durante anos sem perceber que a fôrma que me molda há tempo foi alterada.

Você poderia olhar durante anos para si mesmo e navegar em águas calmas sem ter medo da velhice, de não casar, de não ter filhos, de não comprar um apartamento ou de não morar por algum tempo no Exterior… caso não fossem os seus amigos. São eles que dão ritmo e medida à sua vida. São os amigos que lhe avisam de que o tempo vem derrubando as balizas. Recomendo que esqueçam as rugas. Esqueçam os fios de cabelo branco. Esqueçam o número de velas sobre o bolo de aniversário.

Antigos colegas viajam pelo mundo afora em busca de novos rumos, amores ou aventuras. Eles se casam, separam, são promovidos, são rebaixados, escrevem um livro, engordam, colocam silicone nos seios, descobrem-se gays, engravidam, tornam-se vegetarianos, mudam de profissão.

Todas essas mudanças movimentam o nosso relógio, ou, pelo menos, o instigam a se mexer também. Sem nossos amigos mais próximos, os ponteiros seguiriam seu tic-tac constante, ensaiado e mecânico, sem ter muito que dizer.

O tempo tem como mensageiro não o estalar ríspido de cada segundo ou a folha desbotada do calendário. O aviso vem por meio de um convite de casamento na caixa do e-mail, da festa de formatura, do chá de fralda, da morte, do reencontro e desta engrenagem absurda e extraordinária chamada vida.

Esqueçam as rugas. Esqueçam os fios de cabelo branco. Esqueçam o número de velas sobre o bolo de aniversário.

Soledad à beira do abismo

Estava a cerca de 20 metros do palco. Sobre ele, uma rosa vermelha dançava e cantava. Não conseguia enxergar Soledad Villamil o suficiente para distinguir seus traços ou seus olhos esverdeados. Mas foi o bastante para me deixar extasiada diante de tamanha voz e beleza.

Mesmo distante, pude perceber que a argentina é um tipo raro de mulher, daquelas que mesmo exibindo apenas, e somente, ombros e braços – únicas partes visíveis de seu corpo – poderia deixar qualquer homem – e por que não, uma mulher? – desconcertado, com os olhos fixos na tez clara que se escondia sob o vestido vermelho.

A sensualidade de Soledad não está no corpo – mesmo que ali ela resida -, está em sua atitude. A cantora é comedida em seus movimentos ao dançar, ao sorrir e a soltar a voz, evitando um suposto exagero. Dá a entender que a cantora sabe se, assim o fizesse, inundaria o palco e o teatro, afogando todos com sua graça e voz elástica.

Soledad é um constante quase transbordar. É a vírgula, a beira do abismo. E é justamente isso que encanta a plateia: o quase, que, por sinal, já é o tudo, já o bastante, já é único.

“Quem ela é?”

Essa foi a pergunta que o meu avô fez ao meu pai, enquanto eu me sentava à mesma mesa que ele. Nunca fomos muito próximos, já que meus pais são separados, e o contato com os familiares do lado paterno nunca foi uma prioridade para mim.

Mas o fato é que meu avô não me reconhecia. Sofria de Mal de Alzheimer, devia estar com quase 90 anos. Não lembro de ter sentado no colo daquele senhor de olhar perdido durante minha infância, de ter pedido para me embalar em um balanço ou de ele ter me buscado na escola.

Mesmo assim, o fato de não ser lembrada foi uma das piores experiências da minha vida. Meu rosto não foi reconhecido, minha presença não fez a menor diferença, minha voz não causou nenhuma reação. Era uma folha em branco à frente dele. Nem rancor, carinho, ódio ou desprezo. Nada.

Daquele momento em diante eu sabia que havia sido deletada da vida de alguém, não por escolha, mas uma debilidade cruel que apaga de forma sorrateira as pegadas que deixamos pela vida. Não existir dói. Não fomos preparados para representarmos o vazio.

Ali eu me indaguei se eu existia por ser de carne e osso ou pelo fato de minha existência ser validada pela lembrança que outros tinham de mim. Afinal, o que faz com que eu exista?  Qual a importãncia que os meus rastros têm na vida daqueles que me rodeiam? Em que parte da memória de alguém estarei guardada? Em que outro pedaço serei esquecida?

Vejo e ouço muitas histórias de pessoas que perdem a memória justamente quando ela seria imprescindível, quando a lembrança, muitas vezes, é o único apoio da solidão ou da invalidez. E tive medo de deixar de existir para alguém novamente.

Não quero uma “próxima vez”, mas, caso isso aconteça novamente, não me resignarei ao anonimato imposto. Tentarei registrar, quantas vezes forem necessárias, a minha presença, o meu existir. Precisarei fincar minhas pegadas, mesmo sabendo que após o segundo passo, o primeiro não exista mais.

O homem que vende mapas

O homem que vende mapas fica na saída do supermercado. Quase diariamente, continentes e mares se sobrepõem à calçada estreita por onde escorregam passos ligeiros.

O homem que vende mapas oferece o planeta por um preço camarada. Carrega a humanidade dentro de uma bolsa velha e desbotada, fazendo com que montanhas de gelo derretam e inundem um pedaço de pão mofado.

O homem que vende mapas não sabe onde fica a Alemanha nem a Jamaica, mas carrega o mundo nas mãos com imponência latifundiária.

O homem que vende mapas em frente ao supermercado é dono de um universo que insiste em empurrá-lo para o canto sujo de uma calçada.

Os Alquimistas já chegaram

Os Alquimistas não estão chegando, já chegaram, inclusive devem estar ao seu lado. Só que você anda muito ocupado ultimamente, não é? Lamentável… Mas eles são pacientes, assíduos e perseverantes.

Em seus cadinhos, vasos de vidro e potes de louça tentam, arduamente, transformar este metal bruto, que você carrega no peito e na alma, em uma pedra lapidada e bem trabalhada. Claro que isso exige muito suor, já que as camadas de pessimismo, estresse e rancor dificultam a ação dos Alquimistas.

Mas logo ali (está vendo? ali, ó!) começa a cintilar um naco dourado que jorra abraços, encontros inesquecíveis e gargalhadas compartilhadas. O Elixir da Longa Vida foi descoberto, finalmente!

Contudo, faz-se necessário uma advertência. O maior benefício deste elixir não é a imortalidade, mas a certeza de que eternamente você poderá contar com um amigo, a verdadeira pedra filosofal da vida.